Alguns encontros entre arte e vacina (parte 1) - Rede Gazeta de Comunicação
Alguns encontros entre arte e vacina (parte 1)

CAROLINA REZENDE

Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) da USP

EDSON LEITE

Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP e do PGEHA-USP

Se pensarmos em fragmentos de tempos pretéritos e atuais relacionados à vacina, podemos encontrá-los, em várias ocasiões, refletidos na arte. E, por meio dela, revelam-se histórias, crenças, informações falsas, esperanças, além de um caminho de expressiva importância para a saúde mundial. Assim, obras produzidas no século XIX, bem como manifestações artísticas contemporâneas — a fotografia e a arte urbana emergem com significativa presença neste texto — são exemplos, aqui, da repercussão de contextos onde vacina e arte se aproximaram. E é possível perceber muito do passado no presente.

Em 1884, o pintor francês Eugène-Ernest Hillemacher deu tons à obra Edward Jenner vaccinating a boy. Nessa pintura em óleo sobre tela, a cena se desenrola no interior de uma casa simples, com tijolos acinzentados, berço de madeira próximo às figuras centrais e bules pretos pendurados em uma espécie de prateleira. No centro da imagem, vestida com saia volumosa em tom terroso, avental azul, duas peças de vestuário na parte superior e cabelos adornados por um toucado branco, a mulher segura o pequeno garoto, quase desnudo, não fosse por um tecido que encobre parte de seu corpo. Ao lado do menino está o médico inglês Edward Jenner, que segura firmemente o braço esquerdo da criança e nela insere uma substância, sob os olhares atentos de um homem e de uma menina mais velha. Ao fundo estão dois animais, possivelmente vacas, além de palhas no pilar de sustentação.

Em 1796, quando a varíola ainda atormentava o mundo, carregando uma expressiva taxa de mortalidade, bem como ocasionando temíveis erupções na pele, levando à desfiguração, Jenner, fazendo uso de conhecimentos existentes naquele tempo, além de observações, em relevante experimentação, extraiu fragmentos da pústula provocada pela varíola bovina em uma mulher que ordenhava vacas e estava infectada por tal doença, inserindo-os em um menino. Tempos depois, o médico inoculou naquele garoto o líquido retirado de uma ferida de varíola, no entanto a criança, protegida pelo procedimento anterior, não desenvolveu a forma humana da doença infecciosa.

A vacina de Jenner – que foi a primeira desenvolvida com sucesso contra a varíola – encontrou resistências, provenientes, também, do desconhecimento, de alegações falsas e do medo. Na gravura satírica The Cow-Pock-or-the Wonderful Effects of the New Inoculation!, de 1802, de James Gillray, o médico, prestes a vacinar uma mulher, tem ao seu redor diversos pacientes que, de maneira ilógica, sustentam nas peles erupções no formato de vaca.

Com o transcurso do tempo, é importante destacar, sobreveio o aprimoramento do conhecimento científico. Em maio de 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) celebrou a erradicação da varíola, uma conquista que se tornou possível graças ao intenso programa de vacinação e à cooperação global executados ao longo de anos.

Na fotografia contemporânea, apesar da vacina não aparecer diretamente na série Marcados, 1981/1983, da fotógrafa suíça Claudia Andujar, ela se reflete indiretamente e de forma relevante. A artista, que mora no Brasil desde os anos 1950, viveu por algum tempo com os Yanomami, na região de Catrimani, em Roraima, construindo com eles uma relação. Ocorre que, nos anos 1970, com a construção da rodovia federal Perimetral Norte e a presença de garimpeiros na região, doenças infecciosas chegaram aos indígenas (que, sem imunidade, sofreram uma severa mortandade de seu povo).

Nos idos de 1980, Andujar e dois médicos dirigiram-se à terra Yanomami, na Amazônia, para a vacinação dos indígenas. Em preto e branco, a série de fotografias Marcados repercute o período em que a saúde era uma área crucial a ser tratada. Com o olhar expressivo, fitando a câmera fotográfica, segurando a criança no colo ou esboçando um sorriso tímido, os indígenas foram fotografados por Andujar. Os Yanomami usavam no pescoço, como se fossem colares, placas numeradas; essa numeração e as fotografias foram os modos encontrados para a identificação e cadastramento dos indígenas, possibilitando, assim, o recebimento da vacinação. Décadas depois da realização das fotografias, estas alcançaram o mundo da arte. E, nessa esfera, em uma leitura da obra, pode-se relacioná-la e diferenciá-la, contudo de maneira positiva, de experiências precedentes da própria fotógrafa. De origem judaica, Andujar, ainda adolescente, aos 13 anos, perdeu parte da família, que foi levada para campos de concentração. Se confrontarmos com os tempos sombrios decorrentes das atrocidades nazistas, onde pessoas viravam números (ou símbolos) que podiam servir de marcação para a morte, os números naquelas fotografias de Andujar, ao contrário, representavam a marcação para a vida. A vacinação trazia aos corpos dos Yanomami a imunização que precisavam para viver: “marcados para viver”, como assinalado, em 2005, por ocasião de exposição da fotógrafa.

A primeira vacina contra a poliomielite surgiu em 1955. Antes da imunização, a doença atingiu especialmente crianças em todo o mundo, tirando de muitas delas a capacidade de andar, de respirar sozinhas, de morar com a família ou de viver. A artista Frida Kahlo foi uma das vítimas da doença. Nascida em 1907, quando a vacina era inexistente, a artista teve poliomielite aos seis anos; como consequência da doença: o pé esquerdo atrofiado e a perna direita muito fina, fato que lhe rendeu o apelido, quando criança, de “Frida da perna de pau”. As compridas saias mexicanas que a artista usava, e percebidas em várias de suas obras, eram um meio de esconder as sequelas da infecção e o sofrimento que suportava.

A criança pequena, com a cabeça amparada por uma mulher, recebe a vacina em gotas contra a poliomielite, na aldeia de Sabbatum, Somália. Na sua direção, reverbera-se uma profusão de olhares, a maioria infantis. A fotografia, em preto e branco, é do fotógrafo Sebastião Salgado. Em 2001, Salgado se uniu ao empenho mundial para a eliminação global da poliomielite, ocasionada pelo contagioso poliovírus selvagem, que pode levar à paralisia irreversível e à morte. O fotógrafo percorreu países endêmicos — à época —, como Índia, Paquistão, República Democrática do Congo, Somália e Sudão, onde presenciou o expressivo esforço para a exterminação da doença, que unia profissionais da saúde e voluntários — efeito da Iniciativa Global para a Erradicação da Pólio (GPEI), iniciada em 1988 — em imensa campanha de vacinação contra a doença infecciosa.

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