Renata Falzoni
Jornalista e Cicloativista
James Scavone
Publicitário
Na Inglaterra, o jornalista-ciclista Carlton Reid está em uma jornada por centenas de quilômetros de ciclovias construídas ao longo de rodovias dos anos 30, do século passado. Eram anos em que o transporte sobre duas rodas explodia, com oito milhões de bicicletas a mais do que carros em circulação. Reid faz um trabalho quase arqueológico, tentando recuperar, nesses caminhos, um pouco da história da bicicleta no Reino Unido. Algumas das ciclovias já desapareceram, absorvidas por alargamentos posteriores das estradas. Muitas ainda existem, cobertas por grama ou consideradas estradas de serviço para motoristas.
Quase cem anos depois, agora aqui, em terras brasileiras, um novo projeto de lei obriga a União a implantar ciclovias ao longo das rodovias federais ou interestaduais que tenham, como ressalta o Projeto de Lei, tráfego expressivo de ciclistas ou forte potencial para deslocamentos por bicicletas. Chegamos lá? Na verdade, o projeto é uma modificação de outra lei de 2011, que já pretendia incluir infraestruturas cicloviárias no Subsistema Rodoviário Federal. Uma lei que, como podemos notar olhando pela janela em qualquer viagem de carro, pouco produziu.
Agora pretendem usar o olhômetro nos eixos intermunicipais para fazer a lei valer. O Projeto de Lei indica que bicicleta circulando em números expressivos significa ciclovia à vista. O outro critério é o forte potencial para deslocamentos por bicicletas. Seriam lugares planos? Com sombra? Lugares com vista para o mar? Entre cidades importantes? Como dizem: construam, e os ciclistas virão. É a demanda que deve gerar infraestrutura, ou é a infraestrutura segura e bem iluminada que vai atrair trabalhadores, famílias, pescadores, surfistas, entregadores de aplicativo e crianças a caminho da escola?
Permita-nos uma dose de ceticismo quanto a essa lei “pegar”. Não precisamos de mais um projeto de lei que fique apenas no projeto. Acreditamos no poder transformador das leis na sociedade, mas elas só poderão salvar vidas se chegarem ao asfalto.
No Brasil, o carro é soberano. As duas maiores cidades do país são ligadas pela Via Dutra, inaugurada em 1951. A rodovia, que homenageia o ex-presidente Eurico Gaspar Dutra, costumava ser chamada de Estrada da Morte por seus incontáveis acidentes fatais. Em 22 de agosto de 1976, na altura do município de Resende, no estado do Rio de Janeiro, outro ex-presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, morreu em um acidente de carro. Ele estava a caminho de sua terra natal, Diamantina, em Minas Gerais, quando o veículo colidiu com um ônibus. O epíteto “Estrada da Morte” é bastante comum e já foi usado para definir a rodovia Régis Bittencourt, que liga São Paulo a Curitiba; a rodovia Fernão Dias, que liga São Paulo a Belo Horizonte; e até mesmo a Rio-Santos. As estradas brasileiras matam cerca de 30 mil pessoas anualmente. Números que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, colocam o Brasil em terceiro lugar no ranking de países com mais mortes por acidentes de trânsito. Nossas estradas matam motoristas, motociclistas, pedestres e ciclistas. Não poupam ninguém. Poucas coisas são tão brasileiras quanto crucifixos fincados na beira da estrada.
Assim como aconteceu nos longínquos anos 30 na Europa, chegamos à conclusão de que é preciso separar e proteger ciclistas e pedestres dos automóveis. O Código de Trânsito Brasileiro prevê a circulação de bicicletas em rodovias de pista dupla ou com acostamento, mas não prevê a quantidade de atropelamentos e mortes que poderiam ser evitadas com a aplicação das leis. O Brasil precisa de um pacto social para parar de matar no trânsito. Só temos a ganhar com estradas mais seguras, não apenas para automóveis, ônibus e caminhões, mas também para o deslocamento de pedestres e ciclistas. Que venham as ciclovias margeando nossas estradas. Não temos mais tempo a perder com leis apenas para inglês ver.
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