Os desvios provocados pela pandemia - Rede Gazeta de Comunicação
Os desvios provocados pela pandemia

ARTUR MARQUES DA SILVA FILHO

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, doutor em direito pela USP, livre-docente pela Unesp e professor da PUC-Campinas

O número de contágios supera os do pico da pandemia de Covid-19 e as mortes diárias já se aproximam de mil. As estatísticas estão cada vez mais parecidas com as que se observavam no início da restrição de atividades e distanciamento social em 2020. Ante tal cenário, nota-se de modo claro que as autoridades brasileiras não sabem o que fazer. E as que talvez saibam relutam, provavelmente preocupadas com as pesquisas de opinião e as eleições deste ano.

Sem orientação e movida por um sentimento cada vez mais massificado de anseio pela normalidade cotidiana, a população aglomera-se, a maioria sem máscaras, nos estádios de futebol, manifestações públicas, bares, baladas e parques. Os dados são cada vez mais imprecisos. Há Estados não fornecendo notificações. Pressupõem-se, por lógica, haver acentuada subnotificação de casos.

O novo coronavírus propaga-se em todo o território nacional. Somente não tem provocado danos ainda maiores e ameaçado de modo mais contundente a vida dos brasileiros graças à vacinação. Sim, pois, segundo os médicos e especialistas, a maior parte dos casos graves tem acometido não imunizados.

É muito claro neste momento que nossa população está pagando elevados ônus pela politização da pandemia desde seu início. Ser a favor ou contra a vacina, tratamentos preventivos, lockdown, restrições de atividades, uso de máscaras e medidas sanitárias transparece posição ideológico-partidária.

O oportunista e descabido uso político de uma das mais graves crises globais de toda a história impediu o Brasil de contar com orientação e medidas públicas coesas e sinérgicas para o combate à doença. No âmbito da União, dos estados e dos municípios, cada autoridade optou por caminhos próprios quando o vírus chegou ao País.

Agora, estão em dúvida sobre o que fazer. Alguns preferem o silêncio ou se limitam a singelas medidas inócuas, até mesmo se contradizendo em relação a atitudes que já tomaram ao longo da pandemia. Outros insistem em teses condenadas pela ciência. Nem se consegue disfarçar o constrangedor óbvio: a prioridade é o eleitor de outubro e não o ser humano em situação de risco de contágio ou os pacientes.

O descompasso entre as unidades federativas e destas com o governo central é, sem dúvida, uma das causas da indisfarçável crise institucional que estamos enfrentando. Algo, aliás, que precisa ser devidamente equacionado, pois a democracia e suas regras são fundamentais e precisam ser preservadas.

Além disso, a falta de uma política pública harmoniosa no enfrentamento da pandemia gerou um inusitado volume de leis, muitas de vigência por tempo determinado, decretos, portarias e medidas provisórias. Jamais em minha carreira na Magistratura havia me deparado com um volume tão imenso de normas editadas num curto espaço de tempo.

União, estados e municípios e seus respectivos parlamentos conseguiram promover, na ausência do foco coeso, uma grande confusão jurídico-legal. Hoje, sem exagero, para tomar uma decisão e proferir uma sentença, um juiz tem de consultar várias normas editadas nesses quase dois anos de pandemia. É um grande esforço para saber se não está infringindo alguma regulamentação municipal, estadual ou federal.

A realidade é que recrudescem os contágios e as mortes e aumenta a insegurança jurídica. A situação somente não é pior porque os servidores do SUS (Sistema Único de Saúde) estão lutando com bravura nos hospitais, unidades básicas de atendimento e postos de vacinação. Não fosse o trabalho desses servidores públicos, estaríamos em desvantagem ainda maior na guerra contra o vírus.

É urgente restabelecer medidas de combate à pandemia, de preferência com sinergia e abrangência nacional, bom senso e orientação de especialistas. É hora de pensar mais na saúde pública do que nas urnas, pelo bem do País.

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