Educação e justiça social - Rede Gazeta de Comunicação

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Educação e justiça social

MARCOS GARCIA NEIRA

Professor da Faculdade de Educação (FE) da USP

TADEU FABRICIO MALHEIROS

Professor da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP

Essa forma de pensar pode ser sumarizada na noção multicultural de ecologia de saberes como potente ferramenta para confrontar o projeto científico moderno e monocultural por excelência. A ecologia de saberes é o reconhecimento da copresença de diferentes saberes e a necessidade de estudar as afinidades, as divergências, as complementaridades e as contradições que existem entre eles. Assim, supõe o diálogo de uma ampla gama de conhecimentos, afirmando o conhecimento como interconhecimento.

Ocorre que nesse encontro, a aprendizagem de alguns conhecimentos pode implicar o esquecimento de outros. Isso quer dizer que a ignorância não é necessariamente o lugar de onde se parte, mas pode ser o resultado do esquecimento num processo de aprendizagem recíproca. O esquecimento só é ruim quando o aprendido é valorizado em detrimento do esquecido. Nesses termos, interconhecimento implica compreender a ciência como resultante de uma ecologia de saberes.

Opondo-se à visão otimista disseminada no meio educacional, Sousa Santos ensina que equilibrar a distribuição do conhecimento científico não significa alcançar a justiça cognitiva. Além de ser altamente improvável que isso aconteça no atual cenário neoliberal e colonialista, as intervenções no mundo real exigem bem mais do que o conhecimento científico pode oferecer. Defender a força do conhecimento não científico não significa desacreditar o científico, mas sim empregá-lo, de maneira a não apagar outros saberes. A potência de um conhecimento depende daquilo que ele provoca. O desafio que se coloca é que as intervenções no real possibilitadas pelo projeto científico moderno não impeçam outras manifestações do conhecimento. A força da ciência moderna em muitas áreas é inexorável. Contudo, há inúmeras formas de intervir no real em que o projeto moderno nada contribuiu. Como nenhum conhecimento é capaz de responder por todas as intervenções, todos eles são, em certo sentido, incompletos. Qualquer conhecimento sustenta práticas e constitui sujeitos. Qualquer conhecimento se reflete no que dá a conhecer a respeito de alguém. A ecologia de saberes, segundo Sousa Santos, é entendida como uma outra forma de pensar, fazer e conhecer que incorpora as interações entre o conhecimento científico e o não científico, compreendendo a intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa.

Na ecologia de saberes, os conhecimentos são concebidos como práticas que viabilizam ou inviabilizam determinadas intervenções. Como o próprio nome diz, a ecologia de saberes aposta nas relações entre saberes, nas hierarquias geradas, pois nenhuma prática concreta seria possível sem hierarquias. Mas as hierarquias geradas por essa ecologia são contextuais, apoiando-se nos resultados atingidos pelos diferentes conhecimentos, com predileção para aqueles que permitem maior envolvimento na intervenção.

A experiência curricular

Se comprometida com o combate à injustiça social, a escola deverá empreender um movimento aberto de reconhecimento político e valorização do patrimônio dos grupos minoritários, incorporando ao currículo saberes contra-hegemônicos, isto é, representações elaboradas pelos setores desfavorecidos, para que possa disponibilizar ao(à)s estudantes ferramentas indispensáveis para compreender por que determinadas práticas sociais e formas de realizá-las são legitimadas, enquanto outras são vilipendiadas. Nessas situações, além de incluírem o estudo das manifestações dos conhecimentos pertencentes aos segmentos vulnerabilizados, o(a)s docentes devem estimular reflexões acerca do modo como se produzem e disseminam os discursos pejorativos sobre elas e seus participantes, ou seja, como se desqualificam as diferenças.

Imaginemos que uma professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental tenha definido um dos seguintes temas para ser trabalhado pedagogicamente: o exercício profissional, as festas populares, os meios de transporte, as formas de comunicação, as relações comerciais, o plantio e a colheita, a manufatura industrial, uma rede social, as brincadeiras de antigamente, as eleições, a culinária, a pesquisa científica, a escrita, a arte ou as formas de preservação do meio ambiente. Enquanto práticas sociais e culturais, elas veiculam significados que podem insuflar a integração ou a segregação, afirmar o direito às diferenças e valorizar identidades dominantes. Se a intenção é colaborar para a construção de uma sociedade mais justa, o que só pode acontecer por meio da formação de pessoas solidárias, a experiência curricular deverá instar docentes e discentes à análise dos signos impregnados nas práticas sociais, ao exame das relações envolvidas e à observância de quais identidades são valorizadas e quais minoradas: em suma, como se produzem os privilégios. A depender da narrativa empregada, certos grupos sociais serão diminuídos, exatamente para que outros sejam exaltados. Daí a importância de submeter ao crivo cultural os significados colocados em circulação pelos discursos hegemônicos referentes a determinado tema, que se fortalecem com a reprodução operada por aqueles(a)s que habitam o território escolar.