Alguns encontros entre arte e vacina (parte 2) - Rede Gazeta de Comunicação
Alguns encontros entre arte e vacina (parte 2)

CAROLINA REZENDE

Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) da USP

EDSON LEITE

Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP e do PGEHA-USP

O Brasil, após campanhas de vacinação em massa, foi certificado como livre da pólio em 1994. Em 2003, Afeganistão, Egito, Índia, Nigéria, Níger, Paquistão e Somália eram os únicos países onde a poliomielite permanecia endêmica. A continuação da vacinação massiva e a vigilância são formas para libertar o planeta dessa terrível doença viral. Uma questão humanitária. Em agosto de 2020, somente Paquistão e Afeganistão ainda transmitiam o poliovírus selvagem. No entanto, apesar da diminuição de casos da aludida doença (graças à ampla cobertura vacinal e aos esforços mundiais para a erradicação da poliomielite), a vacinação é de extrema importância para a proteção contra o vírus. Para que pessoas não sejam impedidas de correr, de andar, de se movimentar e de viver.

Com a pandemia da covid-19, manifestações artísticas repercutem a importância da vacinação. Em 2020, um muro em Nápoles, Itália, foi escolhido como suporte para duas imagens de San Gennaro (também conhecido, no Brasil, como São Januário), protetor daquela cidade. As obras, criadas digitalmente, impressas em papel e coladas no muro, lado a lado, são do artista urbano italiano conhecido como Flase. Na primeira, San Gennaro aparece vestido, em tons de amarelo e alaranjado, com o manto e a mitra (paramento litúrgico, de forma cônica, para a cabeça), além de usar máscara de proteção facial contra o novo coronavírus. Com a mão direita, o santo faz um gesto que remete a um movimento oriundo da Antiguidade, ligado à retórica clássica e que entrou no universo cristão. Como se quisesse dizer algo e, para tanto, pedisse atenção. Talvez para muitos a mão direita levemente levantada do santo possa, ainda, ser interpretada como uma bênção dada à cidade da qual é o protetor. Na segunda figura, San Gennaro, vestindo paramentos religiosos na cor laranja, detalhes dourados e crucifixo no pescoço, segura um tubo de ensaio preenchido com líquido vermelho escuro. Uma etiqueta amarrada ao tubo indica a palavra “vacina”. Na época em que a obra foi criada, ainda não havia vacina contra a covid-19, mas esperava-se muito por ela. Nesse contexto, talvez o líquido vermelho da vacina na mão de San Gennaro pudesse simbolizar fé e confiança. Vale lembrar que a Itália, no início da pandemia, foi um dos países muito afetados. Além disso, a San Gennaro atribui-se vários milagres.

Com base na tradição, acredita-se que o santo teve, após o seu martírio e morte no século IV d.C., o sangue colhido e armazenado no interior de duas ampolas. Em Nápoles, a fé em San Gennaro é grande. Em 1527, a cidade fez um voto com o santo, firmado por contrato notarial — porque no período entre 1526 e aquele ano, eventos como guerra, erupções do Vesúvio e epidemia afligiam e tiravam a esperança da população. Pediram ao santo proteção. Em agradecimento, seria construída uma nova capela na catedral, onde seriam alocados o tesouro, bem como as relíquias do santo. A capela foi inaugurada em 1646. Ademais, destaca-se o fenômeno da liquefação do sangue de San Gennaro, quando, em alguns momentos, a substância sólida, que os fiéis acreditam se tratar do sangue do santo, transforma-se em líquido, evento conhecido como “o milagre” de San Gennaro, e sinal de bom presságio. Dito isto, em uma possível leitura da obra do artista urbano Flase, pode-se associar a substância avermelhada do tubo de ensaio (a vacina tão esperada) com o “milagre” da liquefação, simbolizando fé e esperança.

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